Tradição que se acaba
Blocos de rua, os fofós, vão perdendo espaço para a folia comercial dos galpões
Evandro Flexa Jr.
Especial de Cametá
A rica cultura cametaense luta contra o mercantilismo no carnaval da cidade. A maior festa popular do Brasil já quase não atrai mais o povo para as ruas em Cametá - e as concentrações das micaretas, enfurnadas em galpões e clubes, ganham cada dia mais espaço. Este pode ser o fim de uma das principais tradições da cidade que é considerada a pérola do Tocantins.
Cametá, com 374 anos, é um dos municípios paraenses com maior diversidade cultural. É uma cidade interiorana, de povo hospitaleiro e cheia de tradição - preservada pelos mais antigos moradores da localidade. Os habitantes ainda cultuam práticas como passear nas praças e assistir à missa aos domingos. O município também é bastante conhecido por ter um dos carnavais mais animados do Estado.
É justamente neste ponto que alguns moradores de Cametá encontraram um problema. Durante o carnaval, a cidade recebe mais de 60 mil pessoas, que trazem na bagagem seus costumes. Os hábitos dos visitantes acabam se somando aos dos cametaenses e com isso, algumas tradições estão sendo quebradas, e outras já deixaram de existir. Para Iolanda Lopes, uma das mais antigas carnavalescas de Cametá, o carnaval foi substituído pelo comércio.
Iolanda é dona de casa e mora em Cametá há quase 70 anos. Nascida e criada na Pérola do Tocantins, a carnavalesca ainda luta para resgatar as raízes do verdadeiro carnaval cametaense. Sem muita força, a madrinha do Samba do Cacete - uma modalidade de batucada típica da região do baixo Tocantins -, ainda vai às ruas, no domingo de carnaval, levar alegria aos que fecharam um pacto com as raízes local. 'No nosso bloco não tem abadá nem banda famosa. Qualquer pessoa pode entrar. O carnaval é uma festa popular e não um comércio', argumenta.
Os blocos de rua estão cada vez mais escassos em Cametá. E até os visitantes sentem falta dos chamados 'fofós' que arrastavam foliões ladeira abaixo. O servidor público Ruivaldo Silva, mora em Belém, mas adora Cametá pela tradição. 'É uma pena que o carnaval de Cametá esteja tão mercantilizado e capitalista. Os blocos se enfurnam em galpões, e só participa quem paga. Aqui, acabou a popularização da maior festa brasileira', reclama. Silva lembra que em outros municípios, a fantasia é artesanal, algumas feitas de lama, e por isso a identidade continua mantida nestes lugares.
Marchinhas travam duelo com aparelhagens e o 'rebolation'
Manter a tradição é, sem dúvida, uma tarefa fundamental, na opinião da estudante Patrícia Sena. Embora more em Belém, Patrícia não esquece Cametá - berço de muitos momentos felizes. 'Sentar à tarde na pracinha, encontrar os amigos na porta da igreja após a missa e comer doces que não se encontra mais nas grandes cidades, é sem dúvida, muito legal. Já que faz parte da tradição, deve ser mantido. As próprias marchinhas de carnaval são bem legais, e com certeza fazem muita gente levantar', destaca.
As marchinhas de carnaval também relutam contra a modernidade das aparelhagens, assim também versus à entrada de outros sons que nada têm a ver com o estilo da cametaense. 'Está acontecendo um fenômeno do renascimento das machinhas', explica o compositor Alberto Mocbel. Autor de várias cantigas carnavalescas, Mocbel é um dos filhos mais antigos e ilustres da cidade, e por isso, fala com propriedade sobre o carnaval de Cametá. 'Quem está de fora traz as suas músicas e a nossa vai se intrometendo', brinca.
Alberto diz acreditar que, se houver mais organização, é possível conviver com todos os estilos, ainda que sejam bem diferentes.
Com a unificação dos ritmos, que envolve principalmente o brega paraense, o axé baiano e as marchinhas cametaenses, o carnaval de rua está perdendo a sua identidade. Mocbel conta que um dos mais antigos fofós, o chamado 'Bloco dos Carudos', já não dá mais voltas na cidade. Mesmo assim, algumas músicas, como a 'Madame Jararaca', não saem de moda na pérola do Tocantins. Porém, toca bem menos do que o sucesso baiano 'Rebolation'.
Secretário quer fazer resgate do samba do cacete e fanfarras
Mas nem tudo está perdido, se depender do secretário municipal de Cultura de Cametá, Dimitrius Braga. 'O nosso trabalho é preservar, cultivar e divulgar a tradição local. Essas coisas musicais que são trazidas para Cametá, são de responsabilidade dos empresários, donos de blocos, que fazem isso para atrair brincantes de vários cantos do Estado', explica.
Segundo Braga, a prefeitura não contrata bandas que não sejam da terra - e alguns blocos também já estão assimilando esta iniciativa. 'A programação oficial do carnaval de Cametá traz bandas de fanfarras, música de bangüê, samba de cacete, entre outros. As escolas de samba locais, mesmo com temas variados, se voltaram para a nossa cidade', argumenta.
Dimitrius destaca que a prioridade da prefeitura é levantar a cultura local. 'Quem vem nos visitar, quer conhecer a nossa história. A baianada tem em outros cantos do Pará. A nossa ideia é atender à bandas locais, e por isso, os músicos de fora e as aparelhagens não tem vez, em momento algum, na nossa gestão', alerta.
O secretário promete lutar contra a imposição do mercantilismo no carnaval cametaense. 'Estamos elevando alguns impostos no caso das micaretas que trazem aparelhagens e bandas de fora. Por outro lado, incentivamos os blocos de rua, como 'Fofó das Virgens',' Saddan Husseim' e outros, cujo folião não precisa pagar nada para participar', afirma.
Mudanças no carnaval de Cametá
1- O fim da concentração nos bares. Amigos se reuniam para beber, e dali saiam os chamados 'blocos de sujos'. Hoje, os bares são trocados por concentrações em clubes, sedes e galpões. A entrada custa em média R$ 20 - com direito a um abadá e bebida a preços módicos;
2- A substituição das marchinhas por aparelhagens de carros. Sons potentes tocando tecnobrega, melody e axé baiano, impossibilitam que as marchinhas sejam divulgadas. Moradores reclamam da falta de sossego;
3- O fim dos tradicionais folhetins das machinhas de carnaval. As marchinhas praticamente deixaram de tocar, e com isso, não há mais confecção do material impresso;
4- Redução dos Fofós e explosão das micaretas. Os blocos de rua, normalmente familiares, estão desaparecendo. Poucas pessoas acompanham esta modalidade, devido o grande número de micaretas na cidade;
5- O surgimento dos abadás. Para pular a mais popular festa brasileira é preciso pagar. As micaretas, enfurnadas em clubes, galpões e sedes excluem pessoas que não podem adquirir a entrada.
Amazonia Jornal
Edição de 16/02/2010